sexta-feira, 29 de abril de 2011

A alma do negócio: O Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl


A diretora Leni Riefenstahl representa um desafio para a visão crítica de filmes: ela se constitui num evidente talento, é dotada de cultura cinematográfica, capacidade inventiva e inovadora em seu campo de linguagem... a serviço do Nazismo. Sobrevivendo longamente ao regime (nasceu em 1902 e morreu em 2003!), a cineasta sempre negou ter sido nazista, alegando que não se filiou ao partido e também que, se vivesse na URSS ou nos EEUU, faria filmes nesses outros regimes políticos, porque Cinema era sua profissão. Supunha, portanto, certa indiferença da produção artística em relação ao campo político da experiência humana.

Jamais saberemos com exatidão sobre convicções íntimas de Riefenstahl nem de ninguém. Seu trabalho concreto de direção no documentário O triunfo da vontade, que apresenta o Quarto Congresso do Partido Nazista (1934), contudo, é mais que coerente com a ideologia filmada, é um exemplo privilegiado dela, que Leni Riefenstahl assumiu enquanto convicção pública, em elegante estilo cinematográfico. Certamente, alguns tópicos do Nazismo não aparecem de forma evidente na obra, em particular, a questão de como tratar quem era julgado inferior aos arianos – judeus, eslavos, ciganos, homossexuais, deficientes físicos etc -, embora um dos muitos discursos de Hitler ali apresentados fale sobre a força da nação unificada (quer dizer: homogênea, racialmente pura). Mas a magnificência dos auto-designados superiores é reafirmada a cada momento, e num estilo impressionante de exibir poder com beleza visual. Ao invés de indiferença da Arte em relação à Política, Leni exemplifica a perfeita sintonia entre o primeiro fazer e a face hegemônica do segundo: a exibição reforça o que é exibido.

O título do filme foi sugerido pelo próprio Adolf Hitler, inspirado em livro de Friedrich Nietzsche (batizado por terceiros porque o filósofo já se encontrava doente quando escreveu os aforismos que o compõem) como Vontade de potência. Adolf mesmo escolhera a diretora para a tarefa de realizar o documentário sobre aquele encontro partidário e Leni dispôs de importantes recursos e apoios na realização de sua obra. Nunca essa escolha recairia sobre um diretor de posturas políticas contrárias ao Nazismo, ou mesmo independentes em relação a ele!

Pode parecer excessivo supor que Riefenstahl projetou o conjunto de atividades do evento em função da filmagem – ela nem tinha poder para tanto -, mas não é abuso pensar que a diretora participou muito intensamente de seu planejamento conjunto, estudou-o detidamente, garantindo a extrema precisão de tomadas de câmera (que, às vezes, assumiam o ponto de vista de Hitler, num avião ou automóvel, quando não se situavam em meio às tropas em desfile ou a outros grupos), para a posterior montagem do documentário. Nesse sentido, o congresso exemplifica a prática nazista de conceber a Política como obra de Arte (espetáculo) [ Esse tema aparece no clássico ensaio: BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, in: Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp 165/196.] e o documentário de Leni Riefenstahl garantiu o registro desse fazer, constituindo-se ele mesmo noutra criação artística. A minúcia do estudo que Riefenstahl e sua equipe fizeram das cerimônias se manifesta, por exemplo, na filmagem de um batalhão a partir de um ângulo superior à cena, permitindo ver o grupo humano e a sombra projetada de seus braços em saudação nazista, numa multiplicidade de planos e materialidades.

A precisão de tomadas é um importante traço estilístico de Riefenstahl como diretora, expresso através de movimentos de câmera geométricos e contínuos, enquadramentos monumentais e luminosidade teatralmente muito definida, que constituem uma espécie de anti-Expressionismo de Cinema, uma ostensiva resposta ao universo de tensões que marcara muitos filmes da República de Weimar (1918/1933), com seus cenários labirínticos e extremos contrastes de luz e sombra. E, no caso de O triunfo da vontade, a toda hora rola uma suástica. [Parafraseio um verso de Paulinho da Viola: “A toda hora rola uma História”, verso da canção com o mesmo título. Evidentemente, o sambista não tem nenhuma relação com o universo nazista! 3. BARTHES, Roland. Aula. Tradução e apresentação de Leyla Perrone Moysés. São Paulo: Cultrix, 1980].

Tal onipresença do símbolo é muito significativa: era preciso, do ponto de vista do Nazismo, lembrar reiteradamente quem é que mandava ali, como se fora dele não houvesse escapatória. E o estilo de Riefenstahl participa dessa tarefa, com muita eficiência, ao conceber imagens que desejam ser perfeitas, em seqüências de montagem sem tensão,  como se tudo decorresse de uma necessidade do real. Trata-se de um Cinema admirativo, que reitera o que mostra como um permanente ponto final e de exclamação! Essa construtora de imagens parece colocar o espectador na situação de eterno emissor de submissos “ohs!” de deslumbramento e adesão. Se as interjeições fossem dirigidas ao Socialismo soviético ou ao Capitalismo estadunidense, o limite seria o mesmo: uma Arte sem problematizações do mundo, uma Arte de apoio ao mundo tal qual se oferece; o exato contrário da Literatura como anti-ideologia, conforme concebida por Roland Barthes [BARTHES, Roland. Aula. Tradução e apresentação de Leyla Perrone Moysés. São Paulo: Cultrix, 1980.].

A narração de O triunfo da vontade enfatiza uma periodização histórica a partir da derrota na Primeira Guerra Mundial, marco de crise para a Alemanha, e da consolidação do Nazismo, definido como “Renascimento alemão”. Suas cenas iniciais apresentam belos planos de nuvens, índices de altura (vôo de avião) e grandeza do espaço e da visão, além de modernidade de temas e personagens. Logo, o espectador entende que aquele veículo transporta Hitler para as cerimônias do Dia do Partido, em Nuremberg (5 de setembro de 1934). Literalmente, o líder desce dos céus para seu povo [Marilena Chauí fez interessantes comentários sobre a campanha eleitoral de Fernando Collor de Mello, em 1989, incluindo cenas de chegada aérea a locais desse trajeto. Embora o filme de Riefenstahl não seja citado por Chauí, a semelhança de procedimentos narrativos entre aquelas cenas e o filme alemão é grande.  CHAUÍ, Marilena. Comentários em “Debate com o público”, in: CASTORIADIS, Cornelius. A criação histórica: o projeto da autonomia. Porto Alegre : Artes e Ofícios, 1992, pp 40/51 (trecho evocado: pp 47/51)].

O clima da chegada de Hitler é de eufórica alegria, com jovens e crianças aplaudindo e acenando, um público gigantesco em entusiástica recepção. O filme garante um ritmo narrativo dinâmico, com travelings feitos a partir de automóvel em movimento e uma montagem que procura garantir clima de agilidade. As cenas apelam para ícones sentimentais, como uma criança que entrega flores a Adolf ou um gato que se instala numa janela, dando um tom de intimidade familiar a tudo, até trazendo famílias inteiras que observam os acontecimentos de suas janelas.

Mas essa intimidade tem por permanente contraponto a dimensão gigantesca de espaços (ruas, estádios), grupos humanos e adereços (bandeiras, estandartes). O sentimento de grandeza se expressa, ainda, na presença de batalhões e mais batalhões, geometricamente dispostos, multidão que parece um formigueiro bem planejado.
Tal impressão visual de serem insetos submetidos à disciplina matemática se reforça na primeira apresentação do Acampamento da Juventude, com tendas repetidas. A maior proximidade em relação a esse grupo traz jovens (alguns quase crianças) sem camisa, expondo músculos, fazendo barbas,  penteando-se ou lavando-se uns aos outros (um dos rapazes esfrega sabão nas costas de outro), clima de camaradagem masculina que coloca esses virtuais soldados num universo ideal de confraternização, como se não fossem candidatos à morte para dali a pouco. Esse fragmento do filme enfatiza beleza e alegria dos moços, imagem contagiante do Nazismo dotado de tônus e futuro.

Outro agrupamento apresentado com grande beleza é o conjunto de camponeses  (diferentes regiões germânicas) de ambos os sexos e em roupas tradicionais, conduzindo ou usando alegorias com frutos, espetáculo de uma natureza prodigiosa e de uma diversidade submetida à autoridade do Führer.

Um terceiro grupo, somente masculino, que aparece no filme em submissão à autoridade hitlerista é a Frente de Trabalho, com batalhões que empunham pás ou picaretas. Adolf assume aspecto paternal em relação a esses homens, enfatizando o fim do conflito de classes na Alemanha da suástica, no mundo do trabalho militarizado.

A narrativa de O triunfo da vontade é intensamente concentrada na figura de Adolf Hitler. Num segundo plano, aparecem lideranças nazistas importantes, como Martin Bormann, Joseph Goebbels, Hermann Goering., Rudolf Hess. No último lugar, vem a multidão: desindividualizada, feliz, submissa. A submissão de todos à autoridade do primeiro se confunde com os interesses da Alemanha, como se o país e o líder máximo fossem uma só coisa. Exaltar a Alemanha se desdobra em convidar à paciência, ao trabalho incansável, à obediência.

A descida inicial de Hitler vindo do céu sugere uma identificação entre o líder e uma divindade, questão reforçada pelo clima operístico wagneriano de várias cerimônias do congresso, que o filme registra meticulosamente, incluindo seus efeitos de iluminação e coreografia. Juramentos prestados a Hitler, em uníssono, aproximam-se de rezas e estão articulados ao caráter automático de comportamentos como o “passo de ganso”, nos desfiles de tropas. Num filme expressionista como Metropolis, de Fritz Lang (1927), o risco da perda do humano é considerado uma ameaça terrível. Em O triunfo da vontade, a automatização das pessoas figura como grande conquista da sociedade disciplinada.
As multidões humanas se desdobram em oceanos de braços, dorsos e adereços, em especial, bandeiras, estandartes e similares, além de tochas.

No encerramento do Quarto Congresso do Partido Nazista, em meio à ênfase na grandiosidade do ambiente e da multidão reunida, há um absoluto cuidado do filme em relação ao discurso de Hitler. Visualmente, em mais de um momento, o enquadramento de filmagem situou Hitler num canto do quadro com uma imagem de águia noutro canto, espécie de rima visual entre grandezas simbólicas. O crescendo vocal do discurso é minuciosamente apresentado, evidenciando o absoluto domínio retórico do orador (ritmo, volume, dramaticidade). Hitler atua como uma espécie de regente de seu público, que aplaude disciplinadamente nas pausas de sua fala. Após o encerramento do discurso, a entrada em cena de Rudolf Hess, que culmina num convite ao retorno de Hitler, sugere momento meticulosamente coreografado. E as tomadas de cena a partir dos fundos do vasto salão colocam para o espectador do filme uma perspectiva de virtual presença naquele espaço e naquele momento.

Riefenstahl negou, até morrer, ter sido nazista, e apontava como provas disso a presença de múltiplas belezas raciais no filme Olympia (sobre as Olimpíadas em Berlim, de 1936, com a impagável cena da vitória do corredor negro estadunidense Jesse Owens na prova de 100 metros – ele ganhou outras três medalhas de ouro -, produzindo reação irada em Hitler), mais seu posterior projeto inacabado sobre os africanos Nuba (também conhecidos como Nuer), do Sudão, que resultou em longa série de bonitas fotografias, publicadas em livros nos anos 70.

Certamente, esses exemplos assumem de maneira integral belezas não-arianas – em Olympia, junto com atletas negros e brancos, aparecem amarelos, todos com corpos bonitos e ágeis. Pode ser também uma repetição da estratégia presente em O triunfo da vontade: os tópicos explicitamente racistas do Nazismo não figuram de forma evidente na obra. Isso não exime outros filmes de Leni Riefenstahl de serem nazistas, talvez demonstre que havia diversidade sobre doutrina racial no interior do Nazismo; ou ateste o triunfo dessa diversidade depois que aquele regime deixou de existir, no caso do projeto sobre os Nuba, apesar de um ritmo perturbadoramente lento para a efetivação desse novo momento em escala internacional: demorado fim do apartheid no sul dos EEUU (1963!), ainda mais tardia superação do mesmo problema na Rodésia (1980!) e na África do Sul (1991!). E as “limpezas étnicas” na ex-Iugoslávia (1995!) e noutras partes do mundo – inclusive as humilhações físicas que soldados americanos impuseram a prisioneiros de guerra no Oriente Próximo e na prisão de Guantánamo - demonstram, assustadoramente, que práticas exterministas da diferença étnica sobrevivem até hoje.

É incômodo, para quem não comunga do universo ideológico nazista (espero que a maioria dos espectadores atuais!), reconhecer o enorme talento de Riefenstahl. Sim, havia nazistas até brilhantes – no Cinema e noutras áreas de atuação! Que foram nazistas, destruindo os outros, autodestrutivamente. O talento de Leni não elimina esse traço de sua produção artística; diferentemente de um Serguei Eisenstein, que soube problematizar os descaminhos da Revolução Russa, no filme Outubro (e noutros grandes filmes), e enfrentou, depois, as maiores dificuldades para filmar na URSS; ou de um Orson Welles, que debateu brilhantemente o espaço público de Imprensa e Cinema norte-americanos na obra-prima Cidadão Kane (e outros temas, noutros filmes), e teve sua carreira de diretor, praticamente, impossibilitada nos EEUU. Eisenstein e Welles não fizeram propaganda (alma do negócio, negócio sem alma), e atingiram níveis artísticos os mais elevados.

Riefenstahl também enfrentou grandes dificuldades para fazer filmes depois que o Nazismo acabou. Era muito difícil convencer quem derrotou o regime de que ela não contribuíra intensamente para a imagem grandiosa que, um dia, o Nazismo projetou de si, como propaganda.

Parece o clássico samba de Noel Rosa “Cor de cinza”:

A luva é o documento
de pelica e bem cinzento
que lembra quem me esqueceu.

O triunfo da vontade é o documento, de celulóide e em branco e preto, que lembra o que Leni Riefenstahl queria ver esquecido, sem o conseguir.


FICHA TÉCNICA

O triunfo da vontade  (Alemanha). 1935. Direção: Leni Riefenstahl. Produção: Leni Riefehnstal. Montagem: Leni Riefenstahl. Argumento: Leni Riefenstahl e Walter Ruttmann.  Música: Herbert Windt. Efeitos especiais: Ernst Kunstmann. Câmera: Sepp Algeier, Karlç Attenberger, Werner Bohne, Walter Frentz, Hans Gottschalk, Werner Hundhausen,  Herbert Kebelmann, Albert Kling, Franz Koch, Herbert Kutschbah, Paul Lieberenz, Vlada Majic, Richard Nickel, Walter Himl, Arthur Schwertfeger, Károly Vass, Franz Weymahyr, Siegfried Weimann, Karl Wellert e Wiele Zielke. Aparições: Adolf Hitler, Martin Bormann, Joseph Goebbels, Hermann Goering, Rudolph Hess, Reinhardt Henrich, Henrich Himmler, Alfred Rosenberg e Julius Streicher. 114 minutos. Preto e branco.


LEITURAS COMPLEMENTARES

DIEHL, Paula. Propaganda e persuasão na Alemanha nazista. São Paulo: Annablume, 1996.
GIESEN, Rolf. Nazi propaganda films: a history and filmography. Jefferson: McFarland, 2003.
KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

3 comentários:

  1. No "Princípio de Arquimedes", existe um trecho da conversa entre Arquimedes e o soldado romano Dialecticus que o procurava, onde o soldado impele o sábio de Siracusa a calcular, inventar... Arquimedes diz: "Está aí uma bela visão de futuro:o homem de poder mandando no homem de conhecimento...".

    Não sei, nem ninguém saberá do pensamento político de Leni Riefenstahl, é verdade. Claro que ela poderia simplesmente ter aderido por vontado ao nazismo, mas também - como ocorreu a alguns escritores russos durante o regime stalinista - ter sido compelida a trabalhar para a propaganda nazista.

    Fora isto, a arte prevalece sobre a política sempre, pois tem uma resiliência que a molda superior àquela... Mesmo fingindo-se mera ferramenta da política.

    ResponderExcluir
  2. Belo texto, Marcos, sobre uma personagem cujas inquietações são um mistério... de dar arrepios.

    ResponderExcluir
  3. Publicitário vegetariano também faz propaganda de salsicha, e bem feita, às vezes.
    Se Leni gostava mesmo das salsichas de Adolf, é até menos mal. Pior é não gostar e, mesmo assim, fazer o filme.
    O ser humano, disse Sartre, está condenado à liberdade; ninguém é obrigado a fazer nada.

    ResponderExcluir