sábado, 28 de maio de 2011

DESEJO NÃO É PECADO, MAS... (Uma rua chamada pecado)

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O filme de Elia Kazan sobre o clássico drama de Tennessee Williams Um bonde chamado desejo (texto antes agraciado com o importante Prêmio Pulitzer de 1948 - WILLIAMS, Tennessee. Um bonde chamado desejo. Tradução de Pedreira Brutus. São Paulo: Abril Cultural, 1980) foi um desdobramento previsível diante da grande repercussão atingida pela primeira montagem da peça na Broadway, em 1947. Kazan dirigira essa encenação; o ator Marlon Brando a estrelara (diz-se que o impacto de seu desempenho foi tão grande que deu um especial destaque ao personagem Stanley Kowalsky, até maior do que o atingido pela protagonista Blanche Du Bois, sob a responsabilidade de Jessica Tandy); os atores Kim Hunter (fazendo a personagem Stella, irmã de Blanche) e Karl Malden (representando Mitch, amigo de Stanley e namorado de Blanche por algum tempo) também participaram dela.
Essa forte memória que deu destaque a Marlon Brando na montagem teatral incidiu sobre o talento (em especial, uma dicção anti-clássica) e a beleza física do então jovem ator, mais seu inegável carisma cênico. Sem pretender diminuir o peso de tais fatores naquela projeção, vale realçar também como a agressividade do personagem Stanley abrigava aspectos de sobrevivência na selva da sociedade capitalista, enquanto Blanche fenecia sem forças para contrapor aos adversários.  Além disso, cabe destacar o contexto do imediato pós-guerra nos EEUU, marcado por euforia, sentimento de pertencer à maior potência militar e política do planeta, histeria anti-comunista e perseguições contra os diferentes – judeus e outros imigrantes, negros etc -, que o texto de Williams sutilmente apontava.
Tandy foi substituída na filmagem por Vivien Leigh, responsável pela mesma personagem na montagem londrina, de 1949, sob a direção de Laurence Olivier. A mudança foi atribuída à grande popularidade da atriz inglesa desde que protagonizara “...E o vento levou”, dirigido por Victor Fleming em 1939, e que poderia contribuir para o maior sucesso do novo filme. Tennessee Williams colaborou com a versão cinematográfica de seu texto. Havia absoluto entrosamento, portanto, entre o drama original, a direção teatral, a experiência da maioria dos atores principais naquela montagem da Broadway ou em sua similar de Londres e a realização dessa versão filmada.
Nenhuma obra cinematográfica, todavia, repete integralmente um texto pré-existente nem uma encenação teatral feita antes. Afinal, um filme é um filme, com suas dimensões técnicas e de linguagem próprias, mais seu acontecer social específico. Sua realização é dotada de uma materialidade econômica peculiar (produção, distribuição), desdobrada em efeitos públicos (atingir um número de espectadores infinitamente maior do que o de uma montagem teatral e em escala mundial, no caso de uma produção estadunidense; obter uma grande repercussão sobre a opinião pública). Acrescente-se a isso a indesejada “contribuição” das ligas moralistas norte-americanas sobre as referências eróticas da peça na transformação em filme (Kazan declarou que não pôde fazer menção à homossexualidade do suicida marido de Blanche e que foi obrigado a incluir uma possível punição ao personagem Stanley Kowalski, no desfecho do filme - KAZAN, Elia. Elia Kazan: a life. New York: Knopf, 1988), mais a patética transformação brasileira do título original em Uma rua chamada pecado, de acordo com a encenação teatral realizada por Zbigniew Ziembinski, no Teatro Ginástico do Rio de Janeiro, em 1948, com Henriette Morineau no papel de Blanche. Apesar de tudo, o evidente conhecimento de Kazan e de seu elenco sobre a peça se manteve no Cinema, com as nuances próprias a essa linguagem.
A filmagem explorou um espaço físico imediato de ação ampliado em comparação a um palco teatral, incluindo cenas na estação ferroviária de New Orleans e no bonde (chegada de Blanche), encontro entre as irmãs Blanche e Stella no boliche onde Stanley jogava e brigava, cenas de rua.
A personalidade de Blanche se mostra, desde o começo, como no texto original, arredia, misteriosa, enfrentando doses de tensão com o cunhado, uma tensão muito erotizada, que o trabalho corporal de Brando enfatiza largamente. É uma situação que passa por diferenças sociais e culturais (origens aristocráticas – mesmo que decadentes - das irmãs e aspecto rude do trabalhador Stanley, descendente de imigrantes), agravadas pelas posturas evasivas da recém-chegada sobre seu passado e pelo evidente interesse de Stanley em relação às supostas posses da família de sua mulher. O estado falimentar de Blanche agrava sua dependente fragilidade em relação ao cunhado, que se vale dessa situação para oprimi-la e humilhá-la.
Mas Blanche não é totalmente desprovida de poderes, e tenta mobilizar a irmã a seu favor, sem sucesso, tendo em vista a intensa ligação erótica do casal. Além dessas tentativas, ela se refere a Stanley como “polaco”, uma atitude preconceituosa misturada a forte atração pela diferença, identificação de uma atraente animalidade no que a consciência identifica como inferior. Vale lembrar que enquanto Blanche se incomoda com calor e suor, Stanley ostenta as marcas de sua atividade corporal como troféus que, grudando-lhe a camiseta na pele, realçam a massa muscular exibida como chamariz.
Kazan, posteriormente, comentou limitações da atriz Vivian Leigh, realçando seu grande esforço para se superar (KAZAN, Elia. Obraa citada, edição citada). A intérprete foi bem sucedida na configuração de uma enorme teatralidade para sua personagem, incluindo uma dicção declamatória e se valendo de seu aprendizado da fala sulista estadunidense quando interpretara Scarlet O’Hara, no filme ... E o vento levou.  Essa linha de atuação  se revelou adequada para realçar a recusa de Blanche em relação à banalidade do cotidiano e sua opção pela fantasia altamente idealizada (oposição entre verdade e magia), que findava procurando soluções convencionais (pudor, casamento como solução para a extrema instabilidade financeira e emocional), em contraste com reais experiências de ruptura (particularmente, exercício da sexualidade pela mulher solteira ou viúva). A encenação cotidiana de Blanche é uma tentativa canhestra e assinala adequada avaliação dos valores alheios mas também significa auto-negação.
A dupla moral sexual para os diferentes gêneros (valorização da diversificada atividade masculina, vigilância sobre as práticas femininas fora do casamento) sufoca tal mundo. No meio dessa encruzilhada, situa-se  o desejo, que o título original da peça e do filme associa literalmente a uma linha de bonde de New Orleans, mas que também, a partir da mesma associação, ressoa metaforicamente como algo grande, barulhento, capaz de atropelar quem está em sua frente. A principal vítima desse bonde metafórico é Blanche mas Stanley e Stella não se situam fora de seu raio de ação que, afinal, atinge todos os humanos de diferentes formas, como se observa nos vizinhos e amigos do casal.
Os diálogos entre Blanche e os demais personagens se constroem de maneira torta, incluindo mentiras e subentendidos, exercícios de poderes à sua maneira. Não apenas a fala da moça assume esse estilo, sua própria aparência física se oculta e revela através de subterfúgios como maquiagem e penumbra – perda de valor, no mercado afetivo e erótico, da mulher mais velha -, num jogo de mostrar e esconder. E o filme pontua esses labirintos de sentimentos com recursos narrativos como imagens de massa de vapor do trem, jorro de refrigerante e jato de cerveja, figurações simbólicas de orgasmos e ejaculações, energias que não podiam mais ser contidas e também sentimentos de culpa em Blanche diante da visível sujeira delas resultante, paralela ao suor no corpo de Stanley.
O personagem Mitch (o excelente ator Karl Malden) representa um contraponto à agressiva virilidade de Stanley. Alto, discreto, um pouco tímido, ele se interessa por Blanche e começam uma espécie de namoro, fundado numa certa incompreensão recíproca. A mulher se apresenta como pudica e pouco experiente, o homem se mostra protetor e respeitoso, dedicado a cuidar da mãe e a conquistar uma esposa – talvez mãe substituta. A revelação da sexualidade anterior da moça, feita por Stanley àquele amigo, desperta fúria neste, primeiro contra o próprio Stanley, depois contra Blanche. Ele lhe diz que não poderia casar com uma mulher como ela, indigna de conviver com sua mãe, embora a convide para um relacionamento sexual ocasional, como faria com uma prostituta – sem aludir a pagamento, todavia. E Blanche se sente muito ofendida, expulsa-o do aposento e de sua vida.
Esse episódio nos faz lembrar que o desejo é múltiplo, que ele pode ultrapassar uma dimensão apenas genital e incluir universos de sentimentos e reconhecimento recíproco. Junto com um falo, Blanche ansiava pela aceitação moral e afetiva do homem que a amasse - em vão. Mitch assumia se contentar com a vagina (aceitação moral e afetiva, para ele, viria de Stanley, irmão virtual, e da mãe, quer dizer, da sociedade que ele integra fora do exercício genital) mas se condena a ficar preso à mãe, às proibições morais feitas em nome desta e que incluem o olhar daquele amigo-irmão e de outras pessoas de seu círculo, se condena a ficar sem a mulher que o deseja naquele momento e que ele, a seu modo, também deseja – uma opção pela assexualidade, auto-castração virtual.
Apesar de tantas diferenças, Blanche e Mitch se irmanam na vontade de reconhecimento e na dificuldade de imporem padrões próprios de realização. Num e noutro caso, as relações sociais se constituem em algemas.
Seria fácil reduzir o quadro apresentado à violência de Stanley e à vitimização de Blanche. A peça e o filme se encarregam de lembrar como a agressividade daquele homem se constituiu, evocando preconceitos – inclusive de Blanche e até da fervorosa amante Stella - que o atingiam. Sem justificar suas ações, a narração permite ver nesgas de humanidade naquele triste universo destrutivo, que conduz Blanche à loucura: loucas (Blanche) e destrutivas (Stanley) são as pessoas tratadas como tal, produzidas socialmente com essa identidade.
Blanche observa, num determinado momento:
“Morte: o oposto é o desejo.”
Adiante, acrescenta:
“A crueldade intencional é imperdoável.”
A primeira fala também significa que o desejo equivale à vida. A tragédia da vida é que o mundo real está cheio de crueldades intencionais, sem ninguém para legitimar a ausência de perdão. A vida submerge na vitória da pulsão de morte e as relações sociais fazem de tudo para acelerar esse processo.
O internamento de Blanche numa clínica psiquiátrica, no final da peça e do filme, tem a dimensão de morte social: no mundo desencantado, desejo não era mais, necessariamente, pecado (os valores religiosos figuram muito vagamente nessa narrativa e mais como índice civilizatório evocado por Blanche), mas podia ser transformado em loucura ou violência, e tristemente extirpado ou degradado, sob o signo de culpa e punição. Culpa atribuída a Blanche por Stanley; culpa sentida por Stella e por Mitch, ambos impotentes diante daquele encaminhamento; culpa atribuída a Stanley por Mitch e talvez também por Stella: a culpa nada resolvia, continuava como parte do problema.
Era um mundo em explosão, que indicava a impossibilidade de as coisas continuarem daquela maneira. Enquanto não mudavam, restava a profunda dor.
Mudaram?

Uma rua chamada pecado (EEUU). 1951. Direção: Elia Kazan. Roteiro: Oscar Saul, a partir da peça Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams. Direção de fotografia: Harry Stradling Jr. Montagem: David Weisbart. Música: Alex North. Direção de Arte: Richard Day. Figurino: Lucinda Ballard. Produção: Charles K. Feldman. Elenco: Marlon Brando (Stanley), Vivien Leigh (Blanche), Kim Hunter (Stella), Karl Malden (Mitch), Rudy Bond (Steve), Nick Dennis (Pablo), Peg Hillias (Eunice), Wright King (Colecionador), Richard Garrick (Médico) e Mickey Kuhn (Vendedor). Distribuição: Warner Bros. 107 minutos. Preto e Branco.


Leituras que recomendo:

KAZAN, Elia. Elia Kazan: a life. New York: Knopf, 1988.
SILVA, Lajosy. “Memória histórica na dramaturgia de Tennessee Williams”. Fênix. Revista de História e Estudos Culturais. II, 2 (3). www.revistafenix.pro.br/PDF4/Artigo%2002%20-%20Lajosy%20Silva.pdf
WILLIAMS, Tennessee. Um bonde chamado desejo. Tradução de Pedreira Brutus. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Poderosas Mulheres: Levada da Breca

Levada da Breca é um exemplo destacado das comédias amalucadas (screwball comedies) no cinema norte-americano dos anos 30: nada parece funcionar nos eixos e a personagem de Katharine Hepburn, a rica herdeira Susan Vance, faz de tudo para não deixar o pacato paleontólogo Dr. David Huxley (o ator Cary Grant) em paz e conquistá-lo amorosamente.

A desvairada energia de Susan e a excessiva quietude de David sugerem uma complementaridade libidinosa muito especial: a potência vem dela; o homem precisa ser muito provocado (excitado) para atender às demandas da fêmea, que se expressam como excesso de atividade e desejo atropelador; a paz é mais de cemitério que outra coisa, não merece ser mantida. E o macho parece gostar da situação, que o retira do imobilismo, apesar das confusões: as demandas eróticas são dele também, talvez menos conscientes.

Trata-se de um erotismo difuso muito especial, como se o sexo estivesse longe dali, ali mesmo, o tempo todo. Mas a própria energia alucinante da ação e algumas sugestões simbólicas dispersas no filme – o osso do brontossauro (falo adormecido), que aparece, some e retorna, e a fuga da onça (a feroz maciez da libido, tema indireto de uma canção muito posterior de Roberto e Erasmo Carlos: “Um leão está solto nas ruas”) - indicam que o desejo está a todo vapor e produzindo efeitos ótimos sobre seus fiéis portadores: embora tudo pareça sem pé nem cabeça (ou por isso mesmo), triunfa o gozo.
O estudioso Andrew Sarris fala, a respeito desses filmes, em “comédia sexual sem sexo”:  SARRIS, Andrew. You Ain’t Heard Nothin’ Yet: The American Talking Film, History & Memory, 1927-1949. New York: Oxford University Press, 1998. Pode não haver sexo explícito mas as dispersas alusões à libido são incontáveis...
A sede da instituição onde David trabalha (Stuyvesant Museum of Natural History) tem aspecto majestoso, mansão cercada por árvores e amplo jardim. A primeira aparição do personagem é na postura da escultura "O pensador", de Rodin, segurando um osso de grande fóssil montado por ele de forma incompleta, sem saber onde encaixar aquela peça. O esqueleto do brontossauro, portanto, parece com um quebra-cabeça mas a solução do enigma está prestes a surgir pois David recebe telegrama avisando que a peça ausente (clavícula) fora encontrada numa pesquisa de campo e lhe seria entregue no dia seguinte.
Essa notícia é saudada com alegria por ele, que tenta beijar e abraçar sua assistente e noiva, Alice Swallow (a atriz Virginia Walker), sendo rejeitado. A moça tem cabelos presos e usa óculos, sugere uma relação com o homem centrada no trabalho e mesmo assexuada. Ela afirma, propondo que não tenham lua de mel: "Nada pode interferir em seu trabalho". E aponta para o fóssil montado, comentando: "Esse será o nosso garoto". O filme parte, portanto, de um desconforto amoroso - um noivado sem sexo, um projeto feminino de casamento também sem sexo -, sustentado, em função do trabalho, na castração do paleontólogo. O esqueleto do brontossauro se assemelha a uma metáfora da situação que o solitário David vivencia em seu frio noivado: sem vida, incompleto.
Existe a possibilidade de uma grande doação para o museu ser feita por uma milionária (senhora Elizabeth Random, interpretada por May Robson), intermediada por seu advogado (Alexander Peabody, a cargo do ator George Irving). David vai jogar golfe e depois jantar com esse homem, visando a garantir a doação. Alice, muito controladora, aconselha o noivo a deliberadamente deixar Peabody ganhar no jogo.
É no clube de golfe que David conhece Susan Vance - bonita, alegremente agressiva, gozadora, cabelos soltos -, que começa a assediá-lo. Ela toma a bola de golfe do paleontólogo, usa o carro dele e bate noutros automóveis, parte com o assustado homem em pé no estribo do carro... Mais tarde, num luxuoso restaurante onde David fora encontrar o mesmo Peabody, Susan faz com que o distraído cientista escorregue numa azeitona, amassando a cartola, e depois provoca grande descosturado em sua casaca.
Susan parece uma avalanche sobre David, repetindo argumentos que aprendeu com um psiquiatra para acusar o paleontólogo de assediá-la enquanto o assedia. Mas as roupas da moça também ficam descosturadas, mostrando largamente suas calcinhas, e David gruda nela (como autômato ou cachorro no cio) para que as outras pessoas não vejam o panorama. Se a excitação de Susan pelo homem é patente, ele parece demorar a se ligar conscientemente no que está acontecendo e expressa irritação com a insistência da moça, sem nada fazer para se desvencilhar dela.
Susan, sempre muito bem vestida, descobre que o rapaz é noivo e faz de tudo para atrasá-lo em sua tentativa de novo encontro com Peabody. A nova pretendente está muito interessada pelo paleontólogo, ri dele, não consegue levar a sério a pose de dignidade que o sério cientista ostenta – e o espectador ri com ela, torce por ela. A insistente criatura finge, pelo telefone, sofrer o ataque de uma dócil onça de estimação, ainda filhote, que seu irmão lhe enviara do Brasil, David vem salvá-la e entende o logro, retira-se mas o animal o acompanha, incentivado por Susan. Dessa forma, o rapaz é obrigado a seguir com Susan para uma casa em Connecticut, ela provoca acidente na estrada com um veículo carregado de aves e rouba carro para fugir de um guarda que queria multá-la e até prendê-la por estacionar em local proibido. A sucessão desses desastres, portanto, é um furacão sem fim que envolve David e este não tem energias (ou real vontade) para sair das situações, embora até reclame do que está acontecendo.
Chegando à casa de campo, Susan envia as roupas sujas do paleontólogo para uma lavanderia a fim de atrasá-lo ainda mais e impedir seu casamento com Alice. David é obrigado a usar roupão feminino durante um tempo, depois apela para roupas do irmão de Susan – traje de montaria fora do contexto, enfim um terno comum. E descobre que a senhora Random, potencial doadora do museu, é a tia de sua nova pretendente.
A moça fala que quer casar com ele, o cachorro de sua tia (George) rouba o osso do fóssil e o enterra em local desconhecido. Essa última situação deixa David desesperado. Para agravar o que já era grave, a onça foge, encontra com o cachorro da senhora Random mas brinca inofensivamente com o outro animal. E as correrias de David e Susan levam os dois a quedas em barranco e, depois, no leito de um riacho, aproximando-os mais e mais no próprio plano físico via escorregões e roupas encharcadas.
David sempre reclama do que sua parceira está fazendo, sem conseguir desgrudar daquela relação, sugerindo que uma ligação fora estabelecida nos horizontes de ação que se abriam para ele.
Em busca do filhote de onça que fugira, a dupla solta onça feroz que era transportada por dois homens. E confundidos com ladrões, são presos,  situação que piora cada vez mais, culminando com a prisão da própria senhora Random e de seu amigo Major Horace Applegate (o ator Charles Ruggles). Mas Susan consegue fugir e até prender a onça feroz, pensando que se tratava do filhote inofensivo. David domina a fera: a onça-desejo tem um lado dócil e outro agressivo mas pode ser domada pelo homem. A situação o transforma em herói, mesmo que ele desmaie em seguida à ousada ação. E sua noiva Alice, decepcionada com as aventuras do paleontólogo, rompe o compromisso.
No desfecho do filme, Susan procura David no museu para lhe informar que o osso desaparecido do brontossauro fora localizado e que sua tia, afinal, doara a grande importância de que o pesquisador e o Stuyvesant Museum of Natural History necessitavam. Apesar das resistências iniciais, ele confessa que os episódios malucos que viveram juntos constituíram o melhor dia de sua vida, os dois se declaram amorosamente (com a moça numa escada perigosamente oscilante), David a salva de queda e o casal acaba por desmontar o grande fóssil que tinha demorado muito para ser recomposto. Abraço, beijo, fim.
Nessa conclusão de Levada da Breca, David não é mais fóssil, tem vida e desejo com perspectiva de realização, donde a importância simbólica do brontossauro estar completo e ruir espetacularmente por obra e graça de Susan. A excelência dos dois principais intérpretes (Hepburn e Grant), associada à qualidade do elenco de apoio, à eficiência do argumento e à agilidade narrativa quase musical do diretor (Hawks) transformam essa sucessão de desastres numa obra muito bem sucedida, num espaço para manifestar uma sexualidade que, por outras vias mais “sérias”, costumava ser pouco expressa no cinema americano da época, como se o universo da “comédia amalucada” permitisse falar do interdito.
Pertencente a um gênero cinematográfico que mobilizou alguns dos melhores diretores atuantes em Hollywood nos anos 30 – Frank Capra, Ernst Lubitsch, George Cukor – Levada da Breca é um delicioso exemplo de que a alegria é uma das melhores amigas do pensamento. E de que ela é para sempre.

FICHA TÉCNICA
Levada da breca (EEUU). 1938. Direção: Howard Hawks. Roteiro: Dudley Nichols e Hagar Wilde, baseado em estória de Hagar Wilde. Fotografia: Russel Metty. Montagem: George Hively. Música: Roy Webb. Direção de Arte: Van Nest Polglase. Figurino: Howard Greer. Produção: Howard Hawks. Elenco: Katharine Hepburn (Susan Vance), Cary Grant (Dr. David Huxley), Charles Ruggles (Major Horace Applegate), Walter Catlett (Oficial), Barry Fitzgerald (Sr. Gogarty), May Robson (Elizabeth Carlton Random), Fritz Feld (Dr. Fritz Lehman), Leona Roberts (Hannah Gogarty), George Irving (Alexander Peabody) e Virginia Walker (Alice Swallow). Distribuição: RKO Radio Pictures. 102 minutos. Preto e Branco.

LEITURAS QUE RECOMENDO
BREIVOLD, Scott (Ed.). Howard Hawks – Interviews. Mississipi: The University Press of Mississipi, 2006.
HILLIER, Jim e WOLLEN, Peter. Howard Hawks – American artist. Londres: British Film Institute, 1997.
MAST, Gerald (Ed.). Brinking up baby. New Jersey: Rutgers University Press: 1989.