sábado, 4 de junho de 2011

ENCONTRAR E SER ENCONTRADO (Agulha no palheiro)

Era uma vez o Segundo Pós-Guerra, na Itália, no Brasil e no mundo. Os estúdios cinematográficos italianos estavam em parte destruídos pelos bombardeios, além de desmoralizados pela associação que tiveram com o derrotado Fascismo (Cinecittà foi fundada por Mussolini, em 1937). Os brasileiros mal tinham sido construídos, e já ruíam a olhos vistos - defeitos especiais num Capitalismo estabanado. Hollywood continuava de vento em popa, depois de atuar no lado vencedor da guerra, reforçando a hegemonia estadunidense, mas abrigando o trabalho de grandes diretores – John Ford, Fritz Lang e outros.
A experiência da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, em São Paulo, naufragava a todo vapor, em meados dos anos 50; apesar de alguns de seus filmes terem alcançado sucesso até internacional, com destaque para O Cangaceiro, sem esquecer de Sinhá Moça e Tico-Tico- no Fubá, dentre outros. Um dos fatores para o fracasso da empresa foi o contrato com a Columbia Pictures, que distribuía a produção da Vera Cruz e ficava com os lucros, sem responsabilidades de investir. O amadorismo administrativo (compadrios entre conterrâneos), o autoritarismo contra gente talentosa e experiente, como o diretor e produtor Alberto Cavalcanti, e o simulacro de um star system também contribuíram para aquela derrocada.
Falar em diálogos de setores do Cinema brasileiro com o Neo-Realismo italiano e outras tradições internacionais da época é considerar essa historicidade e suas múltiplas mãos: naquele momento, tanto as relações políticas e sociais marcaram a produção artística e cultural, quanto a Arte e a Cultura interferiram, de diferentes formas, na Política e na Sociedade. A importância do Neo-Realismo não se restringiu à experiência imediata. As expressões faciais e corporais de Anna Magnani, em Roma cidade aberta e tantos outros filmes, se fizeram pura Poesia, assim como a montagem e a sensibilidade histórica de Luchino Visconti e a capacidade emocional das obras de Vitorio De Sicca e Cesare Zavattini. Neo-Realismo não era simples reprodução especular da realidade, e sim várias maneiras de produzir beleza (faceta da verdade), preocupadas com experiências sociais. Ao invés de mimetismo (reprodução do real), estava-se diante de escolhas, interpretações e interferências.
É preciso reconhecer diferentes dimensões do Neo-Realismo italiano: parâmetros de produção, uma Poética, transcender esteticamente sua historicidade - o Cinema mundial continuaria a aprender com Visconti, De Sicca/Zavattini e Rosselini, depois daquela conjuntura. E debater as diferenças entre obras associadas a essa tradição, até entre os filmes de um mesmo diretor: Rosselini não é igual a Visconti, nem a De Sicca/Zavattini; Roma Cidade Aberta (1945) não é a mesma coisa que Alemanha Ano Zero (1947).
O raciocínio se aplica ao nascente Cinema Novo brasileiro, que se inspirou, em parte, no Neo-Realismo italiano: Alex Viany é diferente de Nelson Pereira dos Santos e de Roberto Santos, mesmo que tenham trabalhado juntos, como assistentes ou produtores uns dos outros. Agulha no Palheiro (1952), de Viany, junto com Rio 40 Graus (1955), de Pereira dos Santos, e O Grande Momento (1958), de Santos, são filmes inaugurais de um pré-Cinema Novo, ou de um primeiro Cinema Novo, em registros urbanos muito distintos do predomínio rural próprio ao Cinema Novo dos anos 60 (O filme de Viany teve o roteiro, a ficha técnica circunstanciada e o histórico de realização editados em livro: VIANY, Alex. Agulha no Palheiro. Fortaleza: UFCE, 1983).
Agulha no Palheiro se inicia como um agitado mapa parcial do Rio de Janeiro, englobando automóveis, ônibus e pedestres, mais música dramática. Um motorista de pequena lotação, Baiano (o ator Jackson de Souza), é o narrador verbal e personagem que interage com vários outros. A quase briga de Baiano com um motorista de caminhão - homem muito mais alto e forte que ele - apresenta, de cara, sua coragem para enfrentar poderes maiores, que se desdobrará em generosidade e sincera dedicação a amigos e parentes. Amizade e parentela constituem o tecido central da sociabilidade abordada por Viany.
Ambientado no então Distrito Federal, Agulha no Palheiro não perde de vista algumas articulações nacionais e internacionais de seu campo temático: aquele personagem se chama Baiano; a protagonista Mariana (a atriz Fada Santoro) chega do interior de Minas Gerais; seu enamorado, Edu (o ator Roberto Bataglin), apresenta à moça a mulher de um amigo, Mário, chamada Maria (a atriz Helba Nogueira), uma italiana que viveu a experiência final da Segunda Guerra em sua terra e foi resgatada da fome, junto com o filho de um soldado desconhecido, pela generosidade do futuro marido. Em contrapartida, o rico vilão José da Silva (de acordo com informação de sua mãe) costumava viajar para New York, como se riqueza e vilania fossem o não-Brasil, ou um Brasil que fugia de si mesmo.
Abre-se um campo de discussões que ultrapassa o local, sem perder de vista peculiaridades cariocas, expressas na dicotomia subúrbios (bairros não identificados) versus Zona Sul – em especial, Copacabana. Essa dualidade se desdobra numa topografia social de novos pares: pobreza e ostentação, tradição e modernidade, sinceridade e mentira. E é discretamente “costurada” pela prática musical, nas cenas em que o compositor e pianista Juca (vizinho e amigo da família – o ator César Cruz) se apresenta, em emissora de rádio e boate.
O enredo do filme se concentra na vinda de Mariana para o Rio de Janeiro, a fim de encontrar o namorado carioca que conhecera no interior, e lhe dera um endereço falso (número inexistente na Avenida Atlântida), tendo apenas o nome do rapaz como pista – José da Silva, extremamente comum. Ela é prima de Baiano, fica hospedada na casa da tia e faz amizade com Eduardo, que também mora ali.
O ambiente familiar é marcado por uma pobreza discreta: a casa é arrumada, todos aparecem corretamente vestidos – sem luxo. A mãe de Baiano, Adalgisa (Dona Gisa – a atriz Sara Nobre), e a irmã do rapaz, Elisa (a cantora Dóris Monteiro, muito talentosa como atriz), são pessoas simpáticas, afetuosas e solidárias, o que também se observa em Edu, atraído por Mariana, mas extremamente cauteloso e respeitador.
Edu é motorneiro de bonde, profissão humilde, mas com um nível de especialização. Ele sempre se apresenta bem arrumado, em farda elegante (terno, quepe), cabelos alinhados. Numa ida a boate, com Mariana, para tentar encontrar José da Silva, Edu é confundido com um endinheirado, e a moça se apresenta vestida com apuro, embora use roupas alheias. São detalhes que ajudam a localizar o universo da pobreza configurado por Viany: pessoas ajustadas, apesar dos limites financeiros de suas vidas, e que se ajudam reciprocamente.
Uma fala de Eduardo sobre esse mundo é significativa: “Talvez até os pobres tenham que pensar mais por serem pobres...”. Isso indica racionalidade da ação e preservação de laços afetivos. Os pobres dependem da bondade alheia, sem a angústia em fim de linha de Blanche Dubois, na peça Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, filmada por Elia Kazan (1951), versão lançada no Brasil com o disparatado título Uma Rua Chamada Pecado.
Mariana confidencia a Elisa um segredo: está grávida daquele José. A reação dos parentes e amigos, ao saberem, é de compreensão e apoio, sem preconceito, procurando evitar que ela faça alguma “bobagem” – referência a aborto.
O filme caracteriza uma sexualidade perigosa e mesmo condenável. A sempre agitada Elisa, cantora em começo de carreira, fala que aquilo não aconteceria com ela, como se estivesse acima do desejo. Mas a sexualidade ligada à formação de uma família aparece com muita simpatia, como se observa na visita de Edu e Mariana à casa de Mário e Maria, casal perfeito até na similaridade dos nomes. Maria se orgulha da prole, em plena produção (diz, sobre o fértil e fogoso marido: “Pensa que o Mário perde tempo como você?”), questionando a lentidão de Edu, ainda solteiro, para fazer o mesmo. Mário e Maria são um antecedente do amor de redenção experimentado por Edu e Mariana. E Maria tem o nome da mãe de Jesus, arquétipo maternal (à maneira das deusas-mãe) no mundo cristão.
O sexo enganoso e negativo aparece ligado ao mundo dos ricos, onde José da Silva está: engravidar uma moça sem assumir as responsabilidades, ter relações descontínuas. Através do ausente José (encontrado quase no fim do filme – o ator Hélio Souto), o universo da riqueza aparece como perverso moralmente, sem ser associado à exploração do trabalho alheio. A cena em que a criada negra de uma rica família Silva Moreira Bastos revela ter indicado o endereço de José a Mariana, via jornal, sugere que a opressão sobre os pobres se dá por disciplina. O gesto da empregada (a atriz Augusta Moreira) também exemplifica a solidariedade entre pobres, mesclada a um padrão moral e à vingança contra os patrões.
A procura por aquele irresponsável José apresenta o mapa do Rio de Janeiro como labirinto, e os amigos solidários de Mariana, inclusive Dona Gisa e o vizinho Juca, buscam chaves para desfazer seus enigmas: lista telefônica, anúncio em jornal, tentativas de informações pessoais. Além de evocar as cidades cinematográficas de Rosselini e De Sica/Zavatini, há um diálogo com o mapeamento urbano elaborado em M, O Vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang (1931), por policiais e contraventores, retomando tradições do Cinema alemão dos anos 20, como Berlim – Sinfonia da Metrópole, de Walther Ruttmann (1927), e Metropolis, de Lang (mesmo ano). O extremado idealismo de Frank Capra, em A Felicidade não se Compra (1946), com a solidariedade a toda prova contra o mundo da malvada riqueza, não deve ser esquecido. Nem os mistérios dos filmes noir, metamorfoseados aqui em final feliz, mais algumas doses de melodrama. São referências que Viany – importante crítico cinematográfico já naquela época, tradutor de filmes norte-americanos para o português, com experiência de trabalho jornalístico e estudos nos EEUU (AUTRAN, Arthur. Alex Viany: Crítico e Historiador.  São Paulo: Perspectiva, 2003   (Debates – 290) – certamente conhecia bem.
A investigação sobre o paradeiro de José da Silva leva Mariana e Eduardo àquela boate, onde a moça se sente perturbada com um toque afro de música, perguntando se aquilo é macumba. Esse estranhamento sinaliza mais aspectos do popular no filme de Viany. O músico Juca é negro, e se situa numa pequena classe média: dá aulas, compõe, apresenta-se em espaços públicos de elite. Aquela música, com coreografia do poeta e ator Solano Trindade, e que parece incomodar a moça mineira, está nesse mundo social domesticado. Há uma dança meio africana numa cena de boate de Noites de Cabíria (1957), de Federico Fellini, mas sua ocorrência em Roma permite entendê-la como exotismo. No Brasil, o “exótico” é aqui, evidenciando tensões em relação ao meio popular de origem. E o tema do “feitiço” é metaforizado na atração que une Edu e Mariana.
As cenas da boate e do estúdio radiofônico são oportunidades para números musicais com Carmélia Alves, Dóris Monteiro, Trigêmeos Vocalistas e Teatro Popular Brasileiro (dirigido por Trindade). Essas canções e danças nos lembram que Agulha no Palheiro, sem ser uma chanchada, usa suas pontuações, vínculos com o público.
Os ricos (José da Silva, sua mãe e o grupo de amigas desta) aparecem em atividades de lazer (todos) e numa sexualidade irresponsável (José), longe de amor e solidariedade além de sua classe. O encontro de José da Silva, na boate, coincide com o parto de Mariana, no hospital. Depois que a criança nasce, Mariana pede para falar com José. Quando ele retorna da conversa, diz que a moça não o identificou como pai da criança e Elisa confirma isso com a prima. Fica uma dúvida no ar: não era mesmo ele, ou será que Mariana apenas optou por Edu?
José da Silva, no começo do filme, era a agulha a ser localizada no palheiro (cidade grande). A verdadeira e boa agulha, para Mariana, no desfecho, tornou-se Edu, que também a descobriu no palheiro do mundo. Na cena final, Edu e Mariana se tocam as mãos, máximo contato físico permitido pelo filme ao casal.
Uma passagem de Agulha no Palheiro anuncia uma relação crítica com as regras narrativas das radionovelas. Dona Gisa, embora as acompanhe com entusiasmo, afirma serem outros os procedimentos na vida real. O filme pretende ter um regime narrativo próprio, coerente com a realidade. Isso não o impede de incluir uma grávida que nunca tem o ventre crescido: Realismo?
A moralidade vigente na sociedade brasileira da época (em especial, sexo no casamento, visando à geração de família e filhos) é mantida pelo filme, evidenciando um cinema de esquerda comedido, e que apenas exige serem os valores dominantes efetivamente praticados, sem os questionar. Revisto hoje, é possível que a Igreja Católica o receba bem: sexo no casamento e para gerar filhos, condenação do aborto... Embora essa Igreja não apareça tão diretamente, aqui, quanto em Roma, Cidade Aberta (onde o padre é uma referência e um mártir), seus valores sociais pesam até mais que os valores comunistas, com os quais Viany costuma ser identificado, por sua militância partidária. O mundo do trabalho se faz presente (cenas de Baiano, Edu e Dona Gisa trabalhando; apoio do motorista Baiano ao motorneiro Edu; amizade entre Edu e Mário; simpatia dos colegas da empresa de bondes para com Edu e Mariana; participação de motorneiros cariocas como figurantes), mas os maiores ganchos para isso são o drama da moça e seu novo amor.
A proximidade em relação a valores católicos não é surpreendente, tendo em vista a disputa entre setores do PCB e daquela Igreja pela questão social, no Brasil do segundo Pós-Guerra (sindicatos, UNE, movimentos populares, cine-clubes, etc. - PIERUCCI, Antonio Flavio de Oliveira, SOUZA, Beatriz  Muni z de e CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de. “Igreja Católica: 1945-1970”, in: FAUSTO, Boris (Dir.). Economia e Cultura (1930-1964). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, pp 343/380   (História Geral da Civilização Brasileira – tomo III, volume 4). MONTES, Maria Lúcia. "As figuras do sagrado: entre o público e o privado", in: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, pp    (História da vida privada no Brasil  - 4).. Se Viany queria atingir um público de trabalhadores, sabia do peso desfrutado pelo universo católico em seu meio.
O título da chanchada clássica Este Mundo É Um Pandeiro, de Watson Macedo, feita em 1947, teve, em Agulha no Palheiro, uma resposta dramática e sentimental: o palheiro é o mundo, onde corremos o risco de nos perder; as agulhas são as pessoas que amamos e nos amam – que encontramos e também nos encontram.
Esse esboço de Cinema Novo não prescindiu de variadas tradições cinematográficas, além do Neo-Realismo italiano, inclusive do cinema de mercado. E se tornou mais (ou menos...) que Neo-Realismo, o que não lhe tira a importância.

Agulha no palheiro (Brasil). 1952. Direção: Alex Viany. Assistente de Direção: Nelson Pereira dos Santos. Roteiro: Alex Viany. Produção: Rubens Berardo, Moacyr Fenelon, Cine Produções Moacyr Fenelon, Flama Filmes e Unida Filmes. Distribuição: Cinedistri. Música: Cláudio Santoro. Fotografia: Mario Pagés. Desenho de Produção: Ayres Baldissara e Alcebíades Monteiro Filho. Figurino: Julieta Lombardo e Amélia Paula. Edição: Rafael Justo Valverde, Alex Viany e Mario del Rio. Elenco: Carmélia Alves, Fada Santoro, Roberto Bataglin, Renée Brown, Waldomiro Costa, César Cruz, Jaudet Cury, Jackson de Souza, Israel García. Zizinha Macedo, Savina Marques, Dóris Monteiro, Augusta Moreira, Laís Nascimento, Carlos Nefa, Sara Nobre, Helba Nogueira, Lucília Reis, Manoel Rocha, Maurício Silva, Hélio Souto, Miguel Torre, Solano Trindade e Alex Viany. 95 minutos. Preto e branco.




Leituras que recomendamos:

AUTRAN, Arthur. Alex Viany: Crítico e Historiador.  São Paulo: Perspectiva, 2003   (Debates – 290).
ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003 (1ª ed.: 1963).
VIANY, Alex. Agulha no Palheiro. Fortaleza: UFCE, 1983.

Um comentário:

  1. Caro Marcos: Com sempre, um admirável ensaio, não obstante, gostoso de ler, como o filme-tema. É por isso que bato o ponto no seu blog.

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