quinta-feira, 7 de abril de 2011

Reiterar a Dor: Batismo de Sangue

O filme Batismo de sangue, de Helvécio Ratton, se dedica a um grande campo temático: a ação dos dominicanos contra a ditadura brasileira no final dos anos 60 do século XX, a extrema violência governamental no país durante esse período, os grandes sofrimentos impostos aos que ousaram se opor a ela. Tal universo é tratado através de recursos narrativos que procuram reproduzir os acontecimentos com a máxima verossimilhança, o que inclui torturantes cenas de tortura. Essas posturas se desdobram numa tendência a renunciar à Arte (o que importa, anti-aristotelicamente, é a fidelidade ao real, ao que aconteceu), numa Estética da identificação por parte do espectador que transforma a narração numa espécie de jornada reiterativa, confirmatória.

Muitos ótimos filmes retomaram grandes temas, reelaborando-os cinematograficamente. Um exemplo é O sétimo selo, de Ingmar Bergman (1956), que aborda a Europa medieval e a arte popular como força crítica – e isso antes da divulgação internacional do livro clássico de Mikhail Bakhtin Cultura popular na Idade Média e no Renascimento . Outros ótimos filmes exploraram assuntos aparentemente banais ou de difícil acesso, tornando-os temas da maior grandeza, como Meu tio, de Jacques Tati (1958 – há cenas memoráveis que apresentam um anônimo varrendo a rua ou o Sr. Hulot subindo e descendo escadas), e Ano passado em Marienbad, de Alain Resnais ( 1961 – nesse caso, um desafio para o espectador é descobrir qual o tema que está sendo tratado, será que há um tema tratado, será que as personagens tiveram um passado e poderão ter um futuro?).

Essa diversidade nos faz pensar que um ótimo tema, como ponto de partida, não garante a excelência do filme. Entre o assunto escolhido e a obra exibida, é preciso investir talento, inventar um tema de cinema, reinventar o tema no filme. Grandes filmes inspirados em grandes textos literários ousaram reinventar a magnitude prévia: Blow-up, de Michelangelo Antonioni (1966 – inspirado em Julio Cortázar), e Morte em Veneza, de Luchino Visconti (1971 – baseado em Thomas Mann).

Seria injustiça afirmar que não há talento em Batismo de sangue. Bons atores assumiram a maior parte dos papéis e foram bem orientados. O diretor demonstrou inteligência no trabalho com enquadramentos, na construção de cenas e na montagem – há opções por ritmos, uso de cores e até cenas de total escuridão que existem como atos de cinema, interpretações do estado de espírito de personagens e daquele contexto social. Talvez, prepondere certo convencionalismo narrativo mas isso é uma opção de estilo, não defeito.

Ratton dialoga com diferentes gêneros cinematográficos, desde a óbvia identificação com o cinema político até aos filmes policiais e aos filmes de terror – homens de serra elétrica e por aí -, sem esquecer dos filmes de lágrimas (melodramas). Trata-se de legítimas opções de trabalho, que evidenciam estarmos diante de um profissional bem preparado para o fazer cinematográfico. E nenhum desses gêneros é inferior a outros: o grande diretor Luchino Visconti pensou no melodrama para fazer Rocco e seus irmãos (1960) e disso resultou uma brilhante obra-prima; o mesmo pode ser dito em relação a Stanley Kubrick, ao filme de violência juvenil e à excelência de Laranja mecânica (1971).

Batismo de sangue, todavia, padece de extrema submissão a seu ponto de partida temático e textual, reduzindo-se quase sempre à função de ilustrar com imagens e sons (freqüentemente expressivos) o que já sabíamos antes através do livro homônimo de Frei Betto . Daí, ele se desenrolar de maneira quase reverencial em relação aos dominicanos, suas ações e seus sofrimentos nas mãos da ditadura brasileira. Daí, a absoluta coerência de Ratton começar e terminar o filme com a mesma situação – Tito preparando o suicídio e executando o ato: chegamos ao ponto de onde partimos.

É claro que a maioria das pessoas já começa a ver esse filme com uma análise definida: tal violência é asquerosa e faz-se necessário rejeitá-la com rigor, ela até já foi rejeitada pela maior parte dos espectadores antes mesmo de se assistir ao filme. Tal conclusão prévia se complementa com um suspiro de alívio: Graças a Deus que aquela ditadura acabou!

Dar Graças a Deus (com um risco conformista em relação ao presente: nosso mundo é bom por não ser aquele), a partir desse filme, não é figura de retórica: Deus se faz presente nessa narrativa sempre. Por um lado, por necessidade efetiva: falando de religiosos católicos, Ele é referência incontornável. Por outro, por opção desse narrar: o martírio de Tito se define como hagiografia, os dominicanos argumentam que agiam politicamente em nome do sagrado, acima de critérios políticos mais corriqueiros – não pegaram em armas, apoiaram perseguidos dentro de princípios cristãos, a tirania ditatorial é quase uma espécie de anti-Ética que exige ser combatida enquanto tal, Thomas de Aquino legitima tal combate.
Não há motivos para desmentir aqueles dominicanos, que, afinal, sofreram muito mesmo nas mãos da ditadura. Mas, como não somos aqueles dominicanos, há bons motivos para procurarmos explicar seus argumentos, para tratá-los como argumentos e não como Verdade revelada, não como outra Palavra de Deus ou ao menos de Seus mensageiros.

Agindo como porta-vozes de Deus, os personagens se colocam não apenas acima dos torturadores e seus líderes mas também acima de outros grupos de combate à ditadura, talvez até acima dos espectadores, a quem cabe crer. Não é ocasional que surja a frase imperativa: “A esperança desses presos coloca-se na Igreja, única instituição brasileira fora do controle estatal-militar.” Sim, a frase foi originalmente dita pelo Frei Tito, que a registrou por escrito . Outra coisa é o filme redizê-la sem qualquer problematização: será que a Igreja era mesmo a única instituição brasileira fora do controle estatal-militar? Será que o controle estatal-militar era tão onipotente assim?

A saga dos jovens dominicanos é contada, nesse filme, a partir de suas posturas críticas diante da ditadura brasileira daquela época. Somos apresentados a eles num momento de tensão construtiva: ida ao encontro de Carlos Marighella (os jovens com olhos vendados), estabelecimento de suas tarefas naquela relação (retaguarda), um Marighella comunicativo e pensador (estabelece diretrizes, entrega livros de sua autoria aos rapazes).

Em seguida, somos levados à igreja dos dominicanos, pichada com as palavras “Padres comunistas”. Os dominicanos inspiram respeito em sua frágil coragem mas nada sabemos sobre os fiéis que acompanham aquelas missas tão críticas em relação à ditadura. Em sentido paralelo e ampliado, outros sujeitos que combatiam a ditadura aparecem para o espectador como massa informe – estudantes, presos. A aula que valoriza o prazer no sexo atesta boa informação do filme sobre a época mas não se desdobra em maior compreensão sobre seus personagens centrais: o voto de castidade era renúncia ao prazer, havia outros prazeres (a libido investida no combate à injustiça, por exemplo), havia tensões em relação àquele voto? A bonita cena em que uma jovem nipônica convida Frei Beto para namorarem é abruptamente encerrada pelo rapaz com a resposta “Eu sou dominicano”; sua frase é rebatida com uma sensual informação da moça – “Eu sou japonesa”. Quer dizer: e daí?

Nenhum calafrio percorreu o corpo do homem? Se não percorreu, o que houve para que seu corpo se esfriasse tanto em relação a um convite tão bonito? Ler e dialogar com as falas de Leonardo Boff (ex-frei que abandonou o volto de castidade) sobre seu encontro sexual com a mulher talvez ajudasse a humanizar mais aquele momento .

Helvécio Ratton escolheu dar maior ênfase em seu filme a Frei Tito, com destaque secundário para Carlos Marighella e Frei Beto. Tito e Marighella são irmanados por ideais de Justiça, sensibilidade artística (o primeiro canta, desafinadamente, “Lunik IX”, de Gilberto Gil, e “Noite dos mascarados”, de Chico Buarque; o outro elogia Noel Rosa) e martírio – terríveis torturas sofridas por Tito, assassinato de Marighella, Tito suicidado -, irmanados na Missão que lhes custaria a vida. Beto, jornalista na época dos acontecimentos narrados e autor do livro no qual o filme se baseia, aparece principalmente como intelectual e homem de extrema dedicação a seus princípios, junto com Frei Osvaldo e outros companheiros eruditos e sensatos.

Um aspecto da narração que se destaca intensamente é a exibição de torturas medonhas sofridas pelos dominicanos.


Ratton optou por uma filmagem naturalista: partes do corpo violentadas por queimaduras, choques elétricos e pancadas, rostos desfigurados pela dor e pela humilhação, gritos apavorantes. O diretor considerou necessária essa exibição explícita, assumindo um teor quase didático em relação aos piores horrores – não para ensinar a torturar, é claro, mas para o espectador odiar a tortura e seus agentes.
É compreensível e até louvável a vontade de denunciar essas experiências medonhas. Assistindo a elas, o espectador experimenta facilmente a sensação de que está diante dos piores horrores imagináveis, mesmo vivendo num país onde, no primeiro semestre de 2011, o salário mínimo é de R$ 545 – valor insuficiente para se pagar o aluguel de uma kitchnete, tortura elegante e sutil, amplamente legitimada pelos melhores partidos políticos.

A tradição cinematográfica no século XX de denunciar horrores tem um ponto alto nos documentários que os exércitos aliados fizeram quando invadiram a Alemanha nazista e entraram nos campos de concentração: montes de cadáveres (removidos até por tratores), seres vivos que mais pareciam cadáveres ambulantes, horror, horror. Nos próprios documentários estadunidenses sobre essa tragédia, depois de reiterar a veracidade de tudo que está sendo mostrado, há falas sobre estarmos diante da pior crueldade jamais perpetrada ou por perpetrar.

A declaração de horror diante do horror é necessária. O perigo é, considerando-o insuperável em relação ao passado, ao presente e ao futuro, liberarmos geral: pode-se fazer qualquer coisa porque o pior de tudo já foi feito. No caso dos EEUU, o horror nazista era contemporâneo da Ku-Klux Klan, que existe até hoje – embora menos poderosa, reconheça-se. Depois, houve Vietnam, Iraque, napalm, bombarbeios em estilo telegame…

No caso brasileiro, a legítima indignação diante daqueles fatos de tortura pode contribuir para amainar as críticas ao cotidiano contemporâneo da população. Sim, não é a mesma coisa. Mas a catarse a partir da tragédia nos ajuda a conviver pacificamente com sofrimentos menos visíveis.

Junto com isso, a extrema visibilidade das torturas oculta um lado elegante da ditadura: gente como Delfim Netto e Mário Henrique Simonsen não deve ter torturado ninguém jamais; o primeiro é homem culto e inteligente; o outro (já falecido) até cantava árias de óperas, junto com suas tarefas de economista. Mas ambos foram tão responsáveis pelo regime quanto os torturadores e garantiram, para si mesmos, uma memória pública muito mais amena – Delfim Netto escreve regularmente em grandes órgãos da Imprensa e tornou-se quase um interlocutor do governo Lula.

Não se trata, evidentemente, de qualquer preocupação individual “negativa” em relação a essas ou outras personagens. O problema é pensar em imagens perto do estereótipo que certas memórias podem reforçar porque nem tudo, na ditadura, era luta armada, tortura, martírio. Junto com personagens ditatoriais elegantes, como aqueles, some também a sociedade onde os sofrimentos ocorreram. Como é mesmo que vivia o povo de que se falava e em nome de quem se agia? Quem é mesmo Nildes, irmã de Tito, além de ser irmã de Tito?

A tortura, tão detalhadamente exposta, finda sendo compartilhada pelo espectador sob dois ângulos. Por um lado, identificamo-nos com os torturados, sofremos com eles até na própria pele – muitos espectadores, para sofrerem menos, desviam o olhar da tela e não vêem aquilo. Por outro lado, corremos o risco de encarar a tortura como espetáculo, fotogenia da dor a um passo do voyeurismo.


O bom documentário Cidadão Boilesen, de Chaim Litevsky (2009), apresenta denúncias de ex-torturados: alguns torturadores e seus apoiadores, como o personagem-título do filme, sentiam prazer erótico vendo pessoas sob tortura. Certamente, Helvécio Ratton jamais pensou em obter um efeito dessa natureza junto a seu público mas o perigo de se transformar qualquer horror em pornografia é grande – Jean-Luc Godard já o apontou em relação aos filmes e às falas de Steven Spielberg sobre o Holocausto nazista. É desejável que os remanescentes da tortura não estejam usando ce nas realistas de cinema bem intencionado politicamente para fins dessa natureza mas…

Essa exposição da tortura se mescla com uma certa obviedade dicotômica na caracterização dos torturadores, como é o caso da maldade e da vulgaridade de Sérgio Paranhos Fleury, policial que liderou repressão, prisão e tortura de dominicanos e outros opositores da ditadura. Em meio a um violento interrogatório, vê-se uma fotografia de Emílio Garrastazu Médici, ditador naquele momento. São informações corretas mas quase redundantes. E o efeito crítico de se mostrar a cara de Médici ou a truculência pessoal de Fleury finda sendo mais fortes nas pessoas que viveram o auge daquelas personagens – hoje menos lembradas.

Essa obviedade contamina, com sinal invertido, cenas que envolvem a ação dos próprios presos políticos, como aquela em que cantam o Hino da Independência, com destaque para o trecho: “Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil”. Considerando-se que se tratava da independência de um país escravista (o Brasil do século XIX), a noção de liberdade, no hino original, era, no mínimo, muito restrita para não dizer extremamente patética. O entusiasmo não-analítico dos presos que cantavam é justificável. Sua repetição triunfal, quase quarenta anos depois, numa narração cinematográfica é preocupante ou apenas ideologia no sentido clássico marxista – racionalização, inclusive pelas vias subjetivas, do poder.
A preocupação realista do filme inclui uma fala de Fleury sobre seu sonho para o futuro – um barco em Ilha Bela. Sabemos que ele morreria depois num barco em Ilha Bela e possivelmente assassinado. No filme, a frase antevê o justo castigo daquele carrasco – mais catarse para o espectador.

O diretor de Batismo de sangue, em nome do real, quase abre mão de ambições artísticas, embora a Arte vença em muitos momentos do filme. Vale a pena recordar a atitude de Eduardo Coutinho como diretor do documentário Cabra marcado para morrer (1984): embora o filme registre falas de cidadãos reais, o diretor fez questão de realçar sentimentos subjetivos daqueles homens e mulheres e dele mesmo, sem medo de mostrar o que não se viu antes. São atitudes igualmente legítimas, é claro. Resta avaliar quais os resultados cinematográficos mais sólidos que um e outro caminho atingiram.

O filme Batismo de sangue tem sido muito utilizado para fins didáticos, em escolas, congressos e outros eventos públicos, atingindo jovens que não viveram aquela época histórica. Isso é muito bom: ele aborda tema significativo, possui méritos, é dotado de seriedade. Resta salientar a necessidade de aliar aquele uso a uma leitura reflexiva, tanto para evocar a rica tradição da memória cinematográfica brasileira sobre a ditadura civil-militar de 1964/1985 quanto para garantir uma relação crítica entre passado e presente.


Abordar cinematograficamente o Brasil na passagem dos anos 60 para a década seguinte não nos isenta de refletir sobre o Brasil de 2006 (quando o filme foi feito) nem o Brasil de qualquer data em que o filme for apresentado e analisado.


Aquele não foi o único batismo.


FICHA TÉCNICA
Batismo de Sangue (Brasil/França, 2006). Direção: Helvécio Ratton. Roteiro: HelvécioRatton e Dani Patarra. Pesquisa: Stela Grisotti. Inspirado no livro homônimo de Frei Betto (Carlos Alberto Libânio Christo), de 1981. Fotografia: Lauro Escorel. Direção de arte: Adrian Cooper. Figurino: Marjorie Gueller e Joana Porto. Música: Marco Antonio Guimarães. Elenco: Caio Blat (frei Tito), Daniel Oliveira (frei Betto), Léo Quintão (frei Fernando), Odilon Esteves (frei Ivo), Victor Ramil (frei Diogo), Cassio Gabus Mendes (Delegado Fleury) e outros. Cores. 103 minutos.


LEITURAS QUE RECOMENDO

AGUIAR, Marco Alexandre de – “Imprensa, cinema e memória”. Projeto História (História e Imprensa). São Paulo: PUC/SP, 35: 179/199, dez 2007.
BETTO, Frei (Carlos Alberto Libânio Christo). Batismo de sangue: a luta clandestina contra a ditadura militar – Dossiês Carlos Marighella e Frei Tito. 11ª edição. São Paulo, Casa Amarela, 2000.
FEIJÓ, Sara Carolina Duarte. Memória da resistência à ditadura – Uma análise do filme Batismo de sangue. Dissertação de Mestrado em História Social, defendida na FFLCH/USP. São Paulo: digitado, 2010.

3 comentários:

  1. Caro Marcos, parabens pelo blog. Fico feliz com voce blogueiro.
    Gostei muito do Batismo de Sangue, baseado em fatos reais e literário escrito por um dos seus protagonistas. O filme mostra imagens muito belas e reais da vida dos dominicanos, grandes protagonistas no combate a ditadura. Eles tambem ouvem Noel Rosa e Lêem muito. O Livro, a gráfica, a leitura são elementos muito forte nesse belo livro tão natural como a vida retratada e sofrida por muitos que morreram e ficarm loucos. O filme é muito bem vindo e bem ataual nesses 21 anos de um triste e sanguinario momento da história recente do Brasil


    Com um forte abraço,


    damata

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  2. Marcos, é claro que as cenas de torturas são chocantes... mas reais. Quero dizer que existem outras cenas bonitas


    obd,

    damata

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  3. Caro Marcos: Sou honesto. Ainda não vi o filme, mas seu texto me obriga a fazê-lo. Assim que o fizer, volto a este espaço e deixo minhas impressões. Amplexos do JeosaFÁ.

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