quinta-feira, 14 de julho de 2011

ANTES DE MORRER (Viver)




O cinema japonês alcançou grande repercussão na Europa e noutros países do ocidente a partir dos anos 50 do século XX. A divulgação e a premiação de filmes feitos por Akira Kurosawa (Rashomon, no Festival de Veneza de 1951), Kenji Mizoguchi (A vida de Oharu, no Festival de Veneza de 1952) e Yasujiro Ozu (atraiu a atenção internacional com Era uma vez em Tóquio, de 1953) se constituíram num verdadeiro impacto junto à crítica, aos estudiosos e aos diversos interessados por cinema no mundo inteiro. Além de abordarem campos temáticos pouco conhecidos no ocidente, Mizoguchi e Ozu foram recebidos como diretores dotados de uma visão cinematográfica peculiar, marcada por particularidades japonesas nesse universo de linguagem: a profundidade de campo e os planos-seqüência, no primeiro, a altura da câmera em relação a personagens e ambientes, no outro. Kurosawa, por sua vez, era visto como um grande talento, mais permeável ao diálogo com tradições ocidentais de cinema.
Viver, do último diretor, surgiu após o sucesso internacional de Rashomon. O filme de 1952, sétimo na carreira de Kurosawa, aborda o Japão contemporâneo, com as lembranças muito recentes da guerra e as transformações que atingiam o país em vários níveis de seu cotidiano, mesclando tradições nacionais à cultura estadunidense e ocidental, vencedora no conflito de poucos anos antes. Aquele diálogo de Kurosawa se explicitou, portanto, como campo temático e auto-reflexão, incluindo canções em inglês (dentre as quais, “Happy birthday”) e uma certa vontade de ocidentalização em alguns personagens – a nora do idoso burocrata Watanabe reclama da casa onde moram com ele, que é uma construção japonesa tradicional. O drama neo-realista italiano, o film noir norte-americano e o melodrama, com seus diferentes olhares sobre a cidade moderna, foram outros referenciais para o mesmo diálogo.
Watanabe, personagem central do filme, é um burocrata exemplar, chefe de um setor de Relações Públicas em órgão da administração municipal, sem faltar ao trabalho há décadas. O filme se inicia, contudo, com uma imagem radiográfica de seu estômago: o espectador é informado – antes de o próprio personagem saber – que ele está com câncer. Uma voz narrativa traça perfil desse homem: “Ele passa pela vida sem realmente vivê-la. (...) Está morto há mais de vinte anos. (...) Não faz absolutamente nada.”
Tal homem é uma peça eficiente – conseqüentemente, paralisante e paralisada – no labirinto sem fim da burocracia. Ao mesmo tempo em que cresce sua suspeita de que está com câncer, com os dias contados, um grupo de mulheres pobres percorre diferentes setores burocráticos municipais, tentando resolver um problema de esgoto na região onde moram. Era uma questão que ameaçava a saúde de seus filhos devido ao fedor exalado e à proliferação de insetos. Cada órgão administrativo, contudo, encaminhava o grupo para outro, até o ciclo se completar e elas retornarem ao primeiro, e desistirem, revoltadas, frustradas. Eis uma clara imagem da utilidade da  burocracia: nenhuma.
O filme apresenta uma vida no instante de confronto com a morte, o balanço das opções feitas e das esperanças perdidas. Viúvo, com um filho ainda criança quando perdeu a mulher, Watanabe se dedicara integralmente ao menino, que, adulto e casado, mantém relações frias e interesseiras com o pai, num clima de hostilidade e incompreensão. O lento ritmo da narrativa enfatiza os sentimentos de tristeza e solidão experimentados pelo velho burocrata, em meio a um angustiante silêncio. Ele até falta alguns dias ao trabalho (o que nunca fizera antes), diante dessa grave crise.
O encontro com um escritor, num bar, é a primeira ocasião em que Watanabe narra para outro sua doença. O ato de beber, naquela situação, é explicado por ele: “Horrível mas prazeroso ao mesmo tempo. (...) Por um tempinho, esqueço meu câncer”. Ele dá a esse recém-conhecido algumas pílulas para dormir, que pretendia jogar fora, dá comida para um cachorro, quer gastar à toa o dinheiro que juntou durante 20 anos. Seu companheiro de bar, contudo, sente-se fascinado por essa mescla de infortúnio e convívio com a verdade e se oferece para saírem juntos, pagar as despesas, “Agir como seu Mefistófeles”.
Essa última frase é uma espécie de senha para caracterizar o passeio que fazem como uma descida ao inferno, quer dizer, ao desconhecido ou deliberadamente ignorado por Watanabe ao longo de tantos anos: escadas (a descida ao inferno aparece como ascensão, viés crítico na construção da metáfora), mulheres, luzes, música (jazz, rumba), muita bebida, fumaça de cigarros, coisas e pessoas diferentes, prazeres nunca dantes navegados, multidão. A tristeza não desaparece: o doente burocrata pede a um músico para tocar a melancólica “A vida é curta”, repetida na cena quase final do personagem num balanço do parque que ajudou a construir, sob a neve, e prestes a morrer. Mas também a beleza se faz presente nesse trajeto: uma linda mulher, usando um véu transparente, faz strip-tease, para o fascínio de Watanabe e seu Mefistófeles.
A descida/subida ao inferno é uma síntese do Japão multinacional, especialmente no campo da música: quase no fim dessa seqüência narrativa, Watanabe e aquele companheiro estão num carro, acompanhados por duas belas e vulgares prostitutas, que cantam em inglês.
Mas o passeio acaba em vômito de Watanabe (exposição das entranhas, a caminho da morte), para o mal-estar de uma das mulheres, e o burocrata em crise encontra, já de manhã, uma jovem colega de repartição, que veio procurá-lo porque está se demitindo e precisa de sua assinatura na carta com pedido de desligamento. É uma moça cheia de vida e energia que aparecera, antes, numa cena daquele setor burocrático, rindo e convidando os demais a rirem de piadas que lia. Watanabe observa as meias de seda rasgadas da jovem e decide presenteá-la com novas meias, uma aproximação inesperada em relação a um palpitante corpo feminino (sem teor de sedução intencional), embora o comportamento do homem seja discreto e correto.
Esse encontro dá início a um novo relacionamento humano. Ele ri com a moça, que fala dos apelidos atribuídos aos vários funcionários. O apelido de Watanabe é “Múmia”, causador de constrangimento nele, num primeiro momento, sentimento transformado em riso, logo em seguida. Comem juntos, patinam no gelo (ele cai), vão ao cinema (ele dorme). O homem avalia que tiveram um dia maravilhoso.
O triste cotidiano retorna no convívio com o filho e a nora: o rapaz lê jornal na hora da refeição, aborda assuntos impessoais (eletricidade, calor), finda fazendo referências muito vulgares àquela jovem amiga de Watanabe: “uma mulher dessas (...), comportamento degenerado”.
O espectador sabe que não é nada disso, e se compadece com os sofrimentos do idoso doente. Ele tenta um novo encontro com a jovem, que resiste, finda aceitando, e ouve o relato sobre a doença terminal do homem, que diz querer ser como ela. A resposta da moça é: “Apenas trabalho”. Tal frase finda servindo como nova chave para Watanabe (ele sai do restaurante onde estava, ao som de “Happy birthday”, cantada para uma moça ali presente, como se o homem nascesse de novo), que retorna ao emprego, decide encaminhar o problema trazido no início do filme pelas mulheres pobres (necessidade de sanear área de água empoçada e criar um parque para seus filhos). Cinco meses depois, com essa obra realizada, Watanabe morre.
Seu longo velório é uma oportunidade para se entender melhor a profundidade daquele trajeto final (assumir a causa do parque para as crianças pobres, estabelecer uma relação com o mundo que ultrapasse papéis pré-definidos) e os caracteres de familiares e burocratas. A cerimônia abrange uma parte formal contida, e outra informal, de conversas misturadas a bebedeira, oportunidade para o fluxo do inconsciente, que mistura mentiras a descobertas e confissões. Muito do que se comenta ali dá lugar a retrospectos, procurando definir o que exatamente acontecera e quais os seus desdobramentos para todos.
Se o percurso anterior de Viver fora tão intensamente emocional, visando a conquistar o espectador para a causa de Watanabe, esse velório se encarrega de questionar o mesmo cúmplice. Que fazer sem Watanabe em cena?  Watanabe existia num mundo relacional, o espectador também faz parte desse mundo: a poltrona espeta-lhe as costas ou é simples hora de voltar para o cotidiano de repartição pública?
A comovente narrativa, até esse momento, tivera um andamento seqüencial, com poucas evocações do passado. Nessa parte final, os retrospectos são incontáveis, e servem para colocar em confronto versões e apropriações sobre o que aconteceu por diferentes personagens. A multiplicidade de narrações sobre um aparente mesmo referencial fora o recurso poético central do filme anterior de Kurosawa, Rashomon, mas figura nesse Viver de maneira diferente, como retomada do percurso de identificação que toda a parte prévia do filme produzira no espectador.
Um primeiro personagem, nesse universo do velório, é um deputado, que surge questionado por jornalistas sobre a morte de Watanabe e oferece-lhes uma explicação direta e simples: ele morreu de frio.
Em contrapartida, as mulheres pobres entram no ambiente do velório, muito comovidas, demonstrando afeição e efetiva tristeza pela perda daquele homem, provocando certo embaraço entre os burocratas ali presentes.
Na conversa informal entre esses burocratas, emerge a pergunta: quem construiu o parque? A resposta conformista remete para as instâncias administrativas, o que desqualifica a ação de Watanabe. No meio desse argumento, todavia, figuram lembranças de Watanabe indo ao local da água infectada, percorrendo os labirintos da burocracia com aquele bando de mulheres, insistindo humildemente junto a seus superiores hierárquicos. Nesse sentido, o fluxo do inconsciente na conversa entre bêbados configura um velório esclarecedor sobre uma vida e sobre as vidas de todos.
Uma explicação apaziguadora que se esboça é: Watanabe sabia que tinha pouco tempo para viver, qualquer um teria feito a mesma coisa. Mas essa resposta é logo sucedida pela constatação oposta e auto-desqualificadora de um dos burocratas: “Somos inúteis, imbecis, a escória.”
A chegada de um policial, com o chapéu de Watanabe encontrado no lugar onde este morreu, acrescenta novo elemento à questão: ele narra ter visto o idoso doente se balançando sob a neve (a imagem evocativa traz o fim da vida como um instante formalmente próximo à infância, etapa de aprendizados e inícios), e cantando “A vida é curta”.
Após essa comovente lembrança, os burocratas fazem declarações de mudança em suas atitudes, disposição para dedicação ao trabalho, mirando-se no exemplo tão bonito de Watanabe. As cenas seguintes, na repartição, mostram o cotidiano de pilhas de papéis, desatenção com o público, mais do mesmo. Ainda no final do velório, o filho de Watanabe falara para a mulher que tinha encontrado o documento referente às economias do pai, transferidas para ele, e menciona a crueldade do morto por não lhe informar sobre a doença, cômoda maneira de, aos prantos, aquele jovem ocultar sua própria indiferença no processo.
Mas uma herança de Watanabe persistiu: num fim de dia, o colega de repartição que intuiu a densidade daquele trajeto do outro vai ver o pequeno parque infantil resultante de sua persistência. Ele expressa tristeza. É possível que também perceba a chance de viver antes de morrer. Porque a vida é curta, mas é um espaço para escolhas. Fim de filme.
Continuação do filme: cabe ao espectador fazer sua escolha entre o vazio burocrático ou o que é significativo para a comunidade; a entrega exclusiva aos deveres familiares ou o risco também em relação ao que se passa lá fora.
A opção pelo vazio é a negação auto-destrutiva da condição humana. E o lá fora inclui famílias: a família de cada um de nós e as famílias dos outros, como os filhos daquelas mulheres pobres.

Viver. (Japão). 1952. Direção: Akira Kurosawa. Roteiro: Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e Hideo Oguni. Fotografia: Asakazu Nakai. Música: Fumio Hayasaka. Produção: Sojiro Motoki. Elenco: Takashi Shimura, Shinichi Himori, Haruo Tanaka, Minoru Chiaki, Miki Odagiri, Bokuzen Hidari, Minosuke Yamada, Kamatari Fujiwara, Makoto Kobori e Nobuo Kaneko. 143 minutos. Preto e branco.


Leituras que recomendo:

KUROSAWA, Akira. Autobiografia o algo parecido. Madrid: Fundamentos, 1990.
NOVIELLI, Maria Roberta. História do cinema japonês. Tradução de Lavínia Porciúncula. Brasília: Unb, 2007.
RICHIE, Donald. Filmes de Akira Kurosawa. São Paulo: Brasiliense, 1984

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